Perspectivas sobre a realidade

"Dois monges discutiam a respeito da bandeira do templo, que tremulava ao vento. Um deles disse:
– É a bandeira que se move.
O outro disse:
– É o vento que se move.
Trocaram ideias e não conseguiam chegar a um acordo. Então Hui-neng, o sexto patriarca, disse:
– Não é a bandeira que se move. Não é o vento que se move. É a mente dos senhores que se move.
Os dois monges ficaram perplexos."
Esta narrativa, proveniente do budismo, nos faz pensar que há aspectos que são inacessíveis a razão. É uma analogia onde estória e história encontram o ponto comum na humanidade. Em outras palavras, a racionalidade é limitada, ou seja, não temos respostas para tudo, principalmente a algumas questões pertinentes ao longo dos pensamentos propagados por gerações, trazendo em si modelos de realidade, mas não a verdade como realmente ela é. Por exemplo: O que é a vida? A eternidade existe? Como funciona a relação complexa entre cérebro-mente? Quem nós somos? São questões pensadas, conceituadas, porém, sem garantias de que essas angústias racionais sejam de fato conhecidas pelo ser humano. Parecer ruim. Será? Imagine se nós tivéssemos respostas reais para tudo, não seríamos humanos, seríamos imutáveis, fixos, engessados, entediados na existência, sem o mistério a ser revelado, sem a mola propulsora da buscar pelo inatingível. Por outro lado, a narrativa budista exemplifica o ser humano insuficiente, onde a razão não é o único meio de encontrar sentido existencial. Portanto, por mais que a pessoa procure a imparcialidade e o ceticismo para aproximar o observador do elemento da pesquisa, ela estará a mercê de estruturas de pensamentos, possibilitando influenciar a leitura da realidade com a mescla entre objetividade e subjetividade. Por isso, os conceitos não estão fechados, mas migrando e metamorfoseando-se entre várias modelos de símbolos e significados. Neste contexto, devemos levar em consideração que a prática da razão pura não é o único fator determinante na busca de sentido do ser inacabado e insuficiente, pois as experiências, intuições, imaginação, entre outros elementos que integram o ser humano, estão presentes na construção da vida rara, complexa, inteligente e insuficiente, que nos faz interagir com a existência, o mundo, o universo e a nós mesmos.
Esta busca homérica por sentidos, permite confeccionarmos mitos, senso comum, religiões, filosofias e ciências. Construímos teias entrelaçadas com a realidade em si, formando relações próximas e distantes da verdade, sem atingir a sintonia exata daquilo que realmente é. Quanto a isto, Platão, no livro VII da República, descreve o diálogo entre Sócrates e Glauco. O intuito da conversa é o alcance do entendimento através da libertação. Para explicar melhor, o filósofo narra a alegoria da caverna. Nesta história os seres humanos que, desde o seu nascimento, estão aprisionados em uma caverna. Eles não sabem o que é o mundo fora dela. Suas pernas e seu pescoço estão algemados de tal sorte que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas na direção de uma parede de fundo.
Atrás deles, na entrada da caverna, há um foco de luz que ilumina todo o ambiente. Entre esse foco de luz e os prisioneiros, há uma subida ao longo da qual foi erguida uma mureta. E, para além dessa mureta, encontram-se homens que transportam estátuas que ultrapassam a altura da mureta. Eles carregavam estátuas de todos os tipos: de seres humanos, de animais e de toda sorte de objetos. Por causa do foco de luz e da posição que ele ocupa, os prisioneiros enxergam, na parede ao fundo, as sombras dessas estátuas, porém sem conseguirem ver as próprias estátuas, nem os homens que as carregam. Como nunca viram outra coisa além das sombras, os prisioneiros pensam que elas são as próprias coisas.
O que aconteceria, pergunta Sócrates a Glauco, se alguém libertasse os prisioneiros? Olharia a caverna. Ao seu redor, veria os outros prisioneiros, a mureta às suas costas, as estátuas e a entrada da caverna. Seu corpo doeria a cada passo. Afinal de contas, ele ficou imóvel durante muitos anos. Não bastassem as dores do corpo, ao se dirigir a entrada da caverna, ficaria momentaneamente cego, pois aquele foco de luz que clareava a caverna, na verdade era o sol com todo o seu fulgor. Contudo, com o passar do tempo, já acostumado com a claridade, seria capaz de ver não só as estátuas, mas também os homens que as carregavam. Prosseguindo em seu caminho, passaria a enxergar as próprias coisas, descobrindo que, durante toda a vida, não contemplara nada, a não ser as sombras das estátuas projetadas no fundo da caverna.
Na condição de conhecedor desse "novo" mundo, o prisioneiro liberto regressaria ao velho mundo subterrâneo. Ao chegar, ele contaria aos outros prisioneiros o que viu. Sua missão seria libertá-los, pois é somente na condição de homem livre que alguém pode ser capaz de contemplar o mundo das coisas tais como elas são. O que mais poderia acontecer após esse retorno? Uma estranha reação. Ao voltar e contar o que viu, os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras, pois, para eles, o único mundo admissível é o mundo no fundo da caverna. No entanto, se o escravo liberto teimasse em afirmar o que viu e insistisse em convidá-lo a sair da caverna, os prisioneiros das sombras o matariam. E foi assim que Sócrates concluiu o famoso mito da caverna (podemos encontrar a alegoria da caverna reproduzida em várias obras, dentre as quais, o livro Inteligência Humilhada de Jonas Madureira).
Em qual situação nós nos encontramos, como prisioneiros vendo as ilusões como verdade absoluta ou buscando a libertação pelo conhecimento? A primeira situação é mais cômoda, entretanto, não assumi-se o protagonismo da existência, sendo submetido a alienação e a escravidão da ilusão. Na segunda opção busca-se a libertação pelo conhecimento, sabendo-se que viveremos de caverna em caverna ampliando o entendimento sobre a realidade, angustiando-se como ser inacabado no processo vital. Mesmo assim, é importante escolher a segunda opção, pois a nossa ilha do conhecimento precisa expandir as margens para diminuir o mar da ignorância. Este valor é inestimável, porque ainda que não venhamos a decodificar todas os códigos da realidade, estaremos dando voz consciente ao Universo, a vida e a existência.

Comentários

Postagens mais visitadas